São muitas reflexões a cerca desta obra literária, entretanto o que mais tocou-me foi a vidência do cego, que sem aproveitar-se visualmente da claridade, a defendeu com a mais cega pertinência.
A luz é apresentada na versão de alguém que dela nunca usufruiu é um bonito paradoxo, colocado de forma poética.
Esse texto tem muito a ver com o contexto do deficiente visual no Brasil, vale ser lido, assistido, ouvido, comentado e sobretudo refletido.
Uma bela contribuição de Alcântara Machado.
Magda Cunha
Fonte: © Projeto Releituras Arnaldo Nogueira Jr e Movimento Livre
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Alcântara
Machado
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Apólogo Brasileiro sem
Véu de Alegoria
Alcântara
Machado
O trenzinho recebeu em Magoarí o
pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro
doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia
luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E
os vagões no escuro.
Trem misterioso. Noite fora, noite dentro. O chefe
vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da
ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal e mal a data e ia
guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam :
— Vai pisar no
inferno!
Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os
vagões sacolejando.
O trenzinho seguia danado para Belém porque o
maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a
escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou
então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum
desrespeito.
Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um
instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava.
Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado.
Parecia trem de carga o trem de Magoarí.
* * *
Porém, aconteceu que no dia 6 de maio
viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos
azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão dera um
concerto em Bragança. Parara em Magoarí. Voltava para Belém com setenta e
quatrocentos no bolso. 0 taioca guia dele só dava uma forga no bocejo para
cuspir.
Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no
secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou
a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois
descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns
tempos. De repente deu uma coisa nele. Perguntou para o rapaz:
— O jornal
não dá nada sobre a sucessão presidencial?
O rapaz respondeu:
—
Não sei: nós estamos no escuro.
— No escuro?
— É.
Ficou
matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de
novo:
— Não tem luz?
Bocejo.
— Não tem.
Cuspada.
Matutou mais um pouco. Perguntou de
novo:
— 0 vagão está no escuro?
—
Está.
De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a
grita dele assim:
— Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não
acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da
natureza! Luz! Luz! Luz!
E a luz não foi feita. Continuou
berrando:
— Luz! Luz! Luz!
Só a escuridão respondia.
Baiano
velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite:
— Que é que
há?
Baiano velho trovejou:
— Não tem luz!
Vozes
concordaram:
— Pois não tem mesmo.
* * *
Foi preciso explicar que era um
desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da
humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do
povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências?
Não toma? A turba ignara fará valer seus direitos sem ele. Contra ele se
necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo
não. Chega um dia e a coisa pega fogo.
Todos gritavam discutindo com
calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João
Virgulino lembrou:
— Ele é pobre como a gente.
Outro sugeriu uma
grande passeata em Belém com banda de música e discursos.
— Foguetes
também?
— Foguetes também.
— Be-le-za!
Mas João Virgulino
observou:
— Isso custa dinheiro.
— Que é
que se vai fazer então? Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia.
Magafere-chefe do matadouro de Magoarí, tirou a faca da cinta e começou a
esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um
pedaço, jogou pela janela e disse:
— Dois quilos de lombo!
Cortou outro e disse:
— Quilo
e meio de toicinho!
Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram
o chefe. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens
partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.
— Quantas
reses, Zé Bento?
— Eu estou na quarta, Zé Bento!
Baiano velho
quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que
chorando.
— Que é isso? Que é isso? É por causa da luz? Baiano velho
respondeu :
— É por causa das trevas!
O chefe do trem
suplicava:
— Calma ! Calma ! Eu arranjo umas velinhas.
João Virgulino percorria os vagões
apalpando os bancos.
— Aqui ainda tem uns três quilos de colchão
mole!
0 chefe do trem foi para o cubículo
dele e se fechou por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só
restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho
tocava a marcha de sua lavra chamada Às armas cidadãos! 0 taioquinha embrulhava
no jornal a faca surrupiada na confusão.
Tocando a sineta o trem de
Magoarí fundou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O
último a sair foi o chefe, muito pálido.
* * *
Belém vibrou com a história. Os
jornais afixaram cartazes. Era assim o título de um: Os passageiros no trem de
Magoarí amotinaram-se jogando os assentos ao leito da estrada. Mas foi
substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro
das famílias. Diante da Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre
populares.
Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar
as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes da
imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos
se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um
exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou:
— Qual a causa
verdadeira do motim?
O homem respondeu:
— A causa verdadeira do
motim foi a falta de luz nos vagões.
O delegado olhou firme nos olhos do
passageiro e continuou:
— Quem encabeçou o movimento? Em meio da
ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou:
— Quem encabeçou o
movimento foi um cego!
Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente
recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.
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Antônio Castilho de Alcântara Machado de Oliveira (1901-1935) era o
nome completo do autor de "Pathé-Baby", "Brás, Bexiga e Barra Funda", "Mana
Maria" e "Cavaquinho e saxofone". Bacharel em direito, filho do
professor e político Alcântara Machado, preferiu enveredar pela carreira
jornalística e, em 1927, aos 26 anos de idade, era um dos redatores destacados
dos "Diários Associados", em São Paulo. O jornalismo, entretanto, não o
absorveu inteiramente. Consagrou-se também às letras, surgindo como uma das
figuras mais expressivas do movimento modernista. Em 1934, veio para o Rio de
Janeiro, onde passou a dirigir o "Diário da Noite". Estava nesse posto
jornalístico quando, a 14 de abril de 1935, faleceu na Casa de Saúde de São
Sebastião, ao ser operado em conseqüência de uma crise aguda de apendicite.
Distinguiu-se pela vivacidade da linguagem, pela novidade do estilo, pela fiel
reprodução dos tipos e costumes paulistas, bem como pela sátira acerada e
certeira com que alvejava os nossos ridículos. Nos deixou, ainda, a comédia
"O Nortista", e o livro de contos "Laranja da China".(in
"Antologia do Humorismo e Sátira", Editora Civilização Brasileira - Rio de
Janeiro, 1957, pág. 359).
Download do vídeo:
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